HISTÓRIA DE MARIA FLOR
by Betha M. Costa
Parte I – NASCIMENTO
by Betha M. Costa
Nasci. Tarde quente duma primavera que mais que parecia verão.A higiene precária do lugar condizia com o futuro que provavelmente eu viria ter: um catre com panos puídos bem lavados para o parto, vaso com flores de plástico no velho aparador. Para completar o cenário, a total indiferença da minha mãe quando a quenga que também fazia às vezes de parteira anunciou:
- É uma menina!Tem aparência forte!
- Tanto me faz... Deu de ombros mamãe, quando um mundo de outras como ela invadiu o quarto. Passaram-me de braço em braço com se eu fosse um brinquedo novo e diferente naquele lugar cheio de necessidade e infâmia.
Assim, eu vivi como uma boneca sem nome, quarto em quarto daquela casa de tolerância, onde reinava a intolerância de mamãe que só me viu no dia do parto. Sim, pois eu era um “acidente de trabalho” a quem ela negou o seio e as atenções. Antes do sétimo dia após de parir, ela já estava na ativa a receber os homens.
Sua féria variava de acordo com os fregueses: uns pagam menos por reclamar do cheio de leite azedo dos seus seios e outros, até um pouco mais pelo mesmo motivo, tara, sei lá...
Até os três anos - sem ser batizada - chamavam-me de “a bebê” ou “a nenê”. A vida resumia-se a brincadeiras nos cômodos e escadarias naquele lugar sombrio, paredes descascadas, com uma família estranha que entrava e saía a cada instante. Não tinha pai, mãe ou irmãos, por que mamãe desde sempre ordenou que a chamasse de Dinah. Não me tratava como filha. Também não a tratava nem sentia como mãe.
Parte II – INFÂNCIA ROUBADA
by Betha M. Costa
A vida de uma criança sem nome que mora num prostíbulo é algo surreal: brincadeiras com roupas espalhafatosas e maquilagens ordinárias das mulheres. Perseguição a ratos e insetos que se instalavam sob as escadas e meia dúzia de brinquedos que por piedade um ou outro homem trazia e punha em minhas mãos.
Próximo de completar quatro anos veio morar conosco Samara, nove anos, sobrinha de umas das moças que perdera os pais assassinados. Ela passou a ir à escola. Além de brincar comigo ensinou-me as cores e rudimentos das letras e números.
Estava feliz com a sua companhia até que começamos a “brincar de homem”: ela beijava minha boca, meu tórax, partes íntimas e as manipulava de um modo esquisito entre gemidos. Era grande incomodo para mim. Pedia que a gente brincasse de outras coisas. Ela insistia que com o tempo eu ia gostar e que não devia contar para ninguém, pois os adultos não iriam deixar a gente se ver nunca mais. Com medo de voltar a ficar sozinha - sem ter de ninguém atenção - fiz segredo.
Foi nessa época que soube o que as meninas guardavam sob as calcinhas: vendo a intimidade de Samara e a minha própria através de um pequeno espelho. “Brincar de homem” tornou-se uma obsessão para nós duas. A todo oportunidade íamos para debaixo das escadas e lá ficávamos esquecidas...
Em uma das tardes sob as escadas fomos descobertas por um homem que malicioso nos espreitava. Depois, a uma por vez estuprou-nos. Samara não emitiu um som, pareceu gostar e não sangrou. Eu senti forte dor rasgando minhas carnes. Quis gritar. As mãos pesadas daquele homem machucavam-me a boca a ponto de eu quase sufocar. Senti no rosto ele babar-me um boi nojento antes de desmaiar de tanta dor.
Despertei ensanguentada na cama de Dinah que berrava palavrões e coisas inteligíveis... Que ia a polícia dar queixa... As outras prostitutas e a cafetã a demoliram de tal idéia: ia dar problemas. O prostíbulo ficaria visado e os clientes iam se afastar. Chamaram um médico de confiança que cuidou de mim e o caso foi abafado.
Dinah num frêmito maternal lembrou que tinha uma filha sem nome e no meio do chororô falou:
A minha pequena flor. Tão nova e já despetalada.... A minha Maria Flor... Isso: amanhã registro a menina como Maria Flor Lins. Nada mal! Do sórdido episódio ao menos ganhei um nome...
Parte III – DESCOBRINDO A INFÂNCIA
by Betha M. Costa
Falavam comigo e eu não respondia. Ainda não havia ligado um nome a minha pessoa:
- Sou Maria Flor! Dizia a mim mesma cheia de encantamento.
Dinah - entre culpada e aturdida – após eu ter sofrido o estupro destinou-me alguma atenção. Comprou material cor-de-rosa e matriculou-me numa escola-creche. Finalmente aos quatro anos de idade soube como era ser criança! Entrava na escolinha oito horas da manhã e saia cinco da tarde. Aprendi a conviver com meninas e meninos do meu tope e ter a vida lúdica da infância que até então me fora roubada.
A vida só perdia a cor quando voltava para o ambiente onde morava que de longe cheirava a luxúria, no qual eu e Samara continuávamos a “brincar de homem”. Tanto tive a libido desde cedo estimulada que aos oito já tinha penugem nas axilas e púbis. A seguir menstruei o que não foi surpresa para ninguém.
Nessa época Samara afastou-se. Já adolescente (14 anos) passou a ganhar a vida com os homens e mulheres que freqüentavam a casa.
Senti sua falta. Tratei de ensinar nossa “brincadeira” para uma colega da escola. Após dois anos nós fomos descobertas por uma professora e expulsas da entidade.
Parte IV – ESTUDANTE "QUASE" PADRÃO
by Betha M. Costa
O relacionamento mãe-filha entre mim e Dinah de ruim tornou-se péssimo, quando aos dez anos de idade fui expulsa da escola por atos libidinosos com uma colega. Inconformada ela batia no peito. Dizia não saber o que fazer comigo. Até parece... Morando numa casa de prostituição desde o seu ventre, com os exemplos que ela e as outras prostitutas davam-me... Na certa eu ia ser uma flor de pureza!
Para que eu pudesse ser matriculada em outro Curso Fundamental - como se fosse transferida e não expulsa - ela subornou umas pessoas. Conseguiu-me histórico escolar sem máculas, pois eu realmente tinha excelentes notas e boa cabeça para o aprendizado.
Fui doutrinada a não assediar sexualmente ninguém no novo local de estudo, sob a pena de levar uma coça que me deixaria na salmoura e ficar trancada em casa sem nunca mais estudar.
Era bem difícil para quem como eu tive o corpo tocado e aprendido desde cedo a ter prazer, agüentar que outras mãos que não as minhas me tocassem. Virei estudante padrão. Ótimas notas, mas sempre com olhos gulosos sobre os meninas e meninos mais bonitos da classe. Era neles que pensava nas muitas horas em que me masturbava ao ouvir os gemidos de cio das mulheres a alugar seus corpos lá em casa.
No dia dos meus treze anos conheci Ubiracy: vinte e um anos, moreno, cabelos lisos, olhos de índio. Caí de amores e logo estávamos de namoro nos becos próximos. Com ele tive a primeira relação heterossexual e como tudo que dizia de luxúria logo estava viciada nele e nos seus prazeres.
Parte V – "CASAMENTO"
by Betha M. Costa
No início do Ensino Médio - mais de dois anos de namoro com Ubiracy - decidimos fugir. Peguei meus documentos no quarto de Dinah, larguei os estudos e a vida maldita daquela casa.
Ele alugou um kit net mobiliado na periferia da cidade. Passava o dia fora trabalhando e voltava de noite sempre com bastante dinheiro. Acreditei que era vendedor numa loja de materiais de construção.
Nunca fui tão feliz!Tudo estava perfeito: tinha minha casa, meu homem, dinheiro para o básico e estava longe daquele prostíbulo imundo.
De repente meu amor começou a chegar irritado. Reclamava que as vendas tinham caído. Que um sujeito o estava fazendo cobranças. Seu comportamento foi mudando. Passou a beber. Embriagado gritava. Chutava os móveis. Até o dia que esbofeteou meu rosto alegando eu ser um peso nas suas costas.
Deste dia em diante os espancamentos tornaram-se comuns. Eu vivia com corpo e rosto cheios de hematomas dos socos e chutes que nos momentos de ira ele descontava em mim seus problemas. Depois chorava como criança, pedia perdão, dizia amar-me mais que tudo no mundo e que nada daquilo se repetiria.
Aos vizinhos eu falava que era desastrada. Que batera o rosto na porta, caíra na escada... Tinha vergonha de contar que apanhava: eu o amava e julgava ser só uma fase ruim. Calava-me diante das surras, queimaduras de cigarros, ameaças de morte, que eram seguidas de desculpas e promessas de amor eterno nunca cumprido.
Parte VI – PROSTITUIÇÃO E DROGAS
by Betha M. Costa
Aos dezoito anos - não batessem os maus tratos freqüentes e todo tipo de judiação que fazia comigo - Ubiracy resolveu alugar-me para orgias sexuais.
Ameaçada de morte, eu passei a freqüentar locais em que o álcool e as drogas corriam a rodo. Como se dentro de um corpo que não o meu, sujeitava-me a práticas sexuais que iam do sadismo a sodomia. Tive sorte de não viciar nas drogas Mas, tudo aquilo me adoecia por dentro... Eu cria que teria vida honesta e fosse constituir família com o homem da minha vida... Tornei-me um objeto que ele arrendava e ganhava dinheiro!
Com a mente embotada pelos “ácidos”, Ubiracy perdia cada dia mais a noção das coisas, e, eu ficava mais apavorada que numa “fissura” ele me matasse. Ao mesmo tempo pensava: quem sabe melhor morrer que continuar a viver daquele jeito...
Muitas vezes estive um passo do suicídio ou de matá-lo. O amor por ele e a esperança que tudo mudaria como num passe de mágica levava-me a desistir na hora “H”.
Descoberto por sua família, dona de recursos financeiros, meu homem foi internado numa boa Clínica para viciados. Alívio para mim: fiquei livre dos abusos e da prostituição. Consegui emprego como doméstica, Carteira de Trabalho assinada e parecia estar no céu. Infelizmente o céu era muito para mim. Logo soube que estava grávida...
Parte VII – "FAZEDORA DE ANJOS"
by Betha M. Costa
Dezoito anos de idade, trabalhando de doméstica, grávida sem saber quem era o pai, sem família ou amigos a quem recorrer, eu resolvi fazer um aborto.
Minha Patroa, senhora religiosa, quase carola. Muito rigorosa quanto ao serviço da casa. Jamais entenderia minha situação... Com certeza depois que eu tivesse o filho e ela a oportunidade... Despedir-me-ia! Além do mais o que eu faria com um filho que não queria, nem teria condições de sustentar? E quando Ubiracy saísse da Clínica de Recuperação de Drogados? Claro que não me ia querer embuchada de “sabe Deus quem”!...
Consegui o endereço de uma “fazedora de anjos”, nome que se dava as parteiras ou curiosas que por pouco dinheiro faziam abortos. Marquei o “serviço” para uma terça-feira em que estava de folga.
Cheguei à casa discreta por volta das sete da manhã. Junto a outras adolescentes aguardei numa sala espremida e abafada até a minha vez de ir para o ambiente ao lado. Deitei numa maca ginecológica, doparam-se e quando despertei estava tudo feito. Não me foi prescrito nada. Só fui avisada que teria pequeno sangramento por alguns dias...
Mais de uma semana e o sangramento aumentou. Tive febre, calafrios e desmaiei no meu trabalho. Acudida pela Patroa, eu fiquei por cinco dias internada num hospital público com grave infecção que quase me levou a perda do útero.
A Patroa surpreendeu. Comprou remédios e providenciou tudo que eu necessitei depois da alta hospitalar. Foi conselheira sem dar sermões. Graças a Deus e a ela recuperei a saúde e a alegria.
Parte VIII – ALEGRIAS E GRANDE TRISTEZA
by Betha M. Costa
Após escapar da morte por causa de um aborto provocado, eu voltei ao trabalho de doméstica que permitia o meu sustento dentro de uma vida decente e em paz.
Celebrei meu aniversário de dezenove anos sozinha no kit net alugado em que morava. Velas acesas sobre um mini-bolo comprado num supermercado bati os parabéns em minha homenagem e brindei com um refrigerante.
No dia seguinte fui procurada pelo pai de meu amado Ubiracy. Em dois ele sairia da Clínica de Recuperação de Drogados e voltaria para nossa casa. Exultei de alegria com a notícia. Arrumei o melhor que pude o local. Espalhei flores pelos cantos. Fiz seu prato favorito.
Livre das drogas e trabalhando com o pai, meu homem estava feliz. Mudamos para uma casa nova: varanda, sala, copa, cozinha, lavabo, suíte, quarto e um imenso quintal. Deixei o emprego e virei dona de casa. Fiz um jardim em frente à varanda, plantei árvores frutíferas e uma hortinha no quintal. Foram meses felizes!
Não tardou e engravidei. Ficamos encantados com a idéia de sermos pais: enfim seríamos uma família. Aos poucos fomos comprando o enxoval do bebê. Despreocupada e sem sentir nenhum mal estar, aos seis meses de gestação ainda não fizera consulta pré-natal.
A vida era como a brincadeira de casinha que eu não tivera quando menina. Porém, traficantes não brincam nem perdoam quem lhes deixa dívida como Ubiracy... E numa calma noite de domingo invadiram nossa casa, quebraram tudo. Com dois tiros a queima-roupa meu companheiro foi assassinado, apesar das nossas súplicas.
Dor, solidão, enterro... Abandono!... Meus sogros nem quiseram saber de mim e do neto que eu carregava no ventre. Com o pouco dinheiro que tínhamos guardado para o parto, paguei as contas, entreguei a casa e resolvi procurar por Dinah, afinal ela era minha mãe e eu não tinha mais ninguém além dela...
Parte IX – DOENÇA SURPRESA
by Betha M. Costa
Cheguei ao prostíbulo, casa da minha infância, às 21 horas de uma quarta-feira chuvosa. Sozinha, grávida de sete meses, sem dinheiro e sem expectativas encontrei Dinah, minha mãe, que a essa altura era a cafetina dona do lugar.
Para minha surpresa fui bem recebida. Apesar da minha fuga aos quinze anos sem nunca ter dado notícias, ela pareceu feliz em saber-me viva e com saúde. Alojou-me num dos quartos e ordenou que não me incomodassem. Carinhosa, mostrava-se alegre que eu estivesse ali e desejosa de cuidar de mim, coisa que nunca se dera ao trabalho antes...
Uma semana depois completei vinte anos e ela presenteou-me com um berço para meu nenê. No mesmo dia surgiram umas feridas na minha boca e uma lesão esquisita no meu braço direito.
Quase aos oito meses de gestação fui a um Centro de Saúde para o pré-natal. Descobri que gerava uma menina e era portadora do vírus da AIDS.Como nada tinha feito antes, já manifestava sintomas: Sarcoma de Kaposi, um tipo de câncer comum a doença e Monilíase Oral (vulgo sapinho na boca) .
Com a descoberta tardia, provavelmente minha filha nasceria portadora do vírus. Iniciei de imediato de o tratamento com AZT. A vida pregressa de prostituição e drogas enfim cobrava sua conta...
Parte X (Final) – MORTE
by Betha M. Costa
A perda de Ubiracy e o fato de estar com AIDS tiraram-me a vontade viver. Não ligava para o que seria da minha filha ao nascer. Grande depressão apossou-se de mim. Fui enfraquecendo dia a dia.
Via o sofrimento estampado no rosto de Dinah que a essa altura era uma mãe zelosa. Mas, já era tarde para nós duas... Nada mais importava...
A menina nasceu com problemas respiratórios, prematura de oito meses. Soropositiva para Sida recebeu todos os cuidados possíveis. Apática, eu nem quis vê-la: voltei para casa e passei a não tomar os medicamentos.
Enquanto Dinah desdobrava-se entre o hospital para acompanhar a neném e a casa para dá-me assistência, eu definhava com náuseas, vômitos e dores no corpo, além de uma tosse que incomodava o sono.
Com um mês de vida a menina veio para casa pelos braços e cuidados de Dinah. Nos meses subseqüentes ela teve uma doença atrás da outra, enquanto o meu estado piorava com uma pneumonia por Pneumocystis carinii.
Tempo depois, aos vinte anos, eu morri vítima de complicações da AIDS que não tratei. Aqui do limbo vejo e invejo o amor com o qual Dinah cuida da neta batizada de Maria João Lins, filha de Maria Flor Lins e de pai desconhecido.
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