Memórias de Uma Insana



MEMÓRIAS DE UMA INSANA I- Esperança
by Betha Mendonça

Não fazia muito tempo que dormira e já era de manhã. Como? Não tem nem cinco minutos que eu fechei os olhos!...Será que dormi? Devo ter adormecido logo que fez efeito o meu coquetel de tarjas-preta. Um comprimido cor-de-rosa, dois azuis e um branco. Todos miudinhos, mas com poder de ”derrubar“ até elefante! Bem que o doutor disse que eu não vou mais passar madrugadas apavorada, a me esconder das alucinações sob a cama!

Adeus as nuvens de fumaça, a queda no abismo. O fogo que em vez de queimar gelava o meu corpo, por que desde menina ouvia falar do ”mármore do inferno“ e como o mármore é frio ao tato, nas minhas sandices as chamas nas quais eu ardia eram frias. O contato com essas ”labaredas“ era doído como se milhares de pequenos espinhos perfurassem minha pele.

Adeus aos barulhos que se faziam dentro da minha cabeça... Ruídos de engrenagens, correntes a se arrastar no chão, gemidos e gritos guturais, que saiam como abelhas pelos meus ouvidos e se espalhavam pelo quarto misturados as visões.

Adeus a língua que engrossava e tropeçava nas palavras, quando eu queria pedir a alguém que viesse me socorrer. O gosto de morte na boca e os lábios serrados, sem que eu pudesse lhe cuspir de dentro de mim...

Adeus aos cheiros psicodélicos que entravam nas minhas narinas. Odores estranhos de enxofre, bolor e umidade, que dificultavam a respiração e inundavam os meus pulmões a ponto de quase me sufocar.

Adeus as serpentes em vai-e-vem nas minhas entranhas, a destilar o veneno da amargura que tomava minha corrente sanguínea e viajava por todos os órgãos clamando para que eu me matasse.

Ponho fé no doutor. Ele disse que eu não vou mais passar madrugadas apavorada, a me esconder das alucinações sob a cama!

MEMÓRIAS DE UMA INSANA II – Surto
by Betha Mendonça

Na ala quatro do setor psiquiátrico o silêncio incomoda os ouvidos. É o isolamento. Quarto todo acolchoado: paredes, chão, cama, mesas...

Fui levada do setor um para lá depois da crise. O doutor e minha família mostraram ares de reprovação e desapontamento com a minha atitude... Mas, não eu tive culpa!

Despertei de repente com um latejar na cabeça. Eram tantas as vozes que falavam em línguas diferentes que fiquei descontrolada. Desejei que elas parassem. Quanto mais meu interior lutava contra elas, mais aumentam o tom dentro dos meus pensamentos.

No auge do desespero dirigi-me a um dos cantos do quarto e na tentativa de parar com o tormento, bati inúmeras vezes com a maior força que tenho com os lados do crânio nas paredes. E tantas foram às vezes e tanta a força empregada - o sangue a espalhar-se no cômodo - que perdi a consciência. Não sei se pelo traumatismo ou perda sanguínea, eu fiquei por dias desacordada.

Quando tornei a mim estava na ala quatro, os cabelos raspados, o couro cabeludo cheio de ferimentos com suturas semelhantes a uma convenção de centopéias.
Dizem que foram mais de setenta pontos para consertar o estrago feito. As visitas da família de semanais passaram a quinzenais. Mais isolamento... Achei até bom, por que eu não gostava do ar de piedade que me lançavam e da condescendência falsa que demonstravam ter.

O doutor mudou a medicação e o rumo da psicoterapia que estava usando. Disse que eu precisava me ajudar também. Não sabia como: já fazia o melhor que podia!Ele dizia que acreditava em mim e não ia desistir de me curar.

MEMÓRIAS DE UMA INSANA III – Alucinações
by Betha Mendonça

Vez por outra vinha uma enfermeira medir minhas funções vitais, trazer medicação ou simplesmente checar se eu não fizera nenhuma bobagem. Como se naquele sanatório, na ala quatro, com quarto acolchoado e sem nada além de mim mesma, desse para fazer algo... Até minhas unhas eram cortadas para que eu não me arranhasse e tirasse lasquinhas da pele. Um tédio!

O uso de termos “nós vamos comer tudo!”, “como estamos hoje?” e outros que as enfermeiras usavam ao se dirigirem a mim, irritavam-me a ponto de gritar-lhes com plenos pulmões: - Eu sou louca, não sou criança!Parem de falar e me tratar como tal! Assim conseguia me livrar das suas presenças incomodas.

Sentia-me melhor com “o barato” advindo com os efeitos colaterais dos remédios. Ah, eram tão bonitas as rendas coloridas que eu via nas paredes!...Elas balançavam e giravam formando desenhos incompreensíveis, mas que davam sensações muito agradáveis.

Efeito semelhante eu conseguia quando fechava os olhos e comprimia a ambos nas órbitas com o indicador e polegar direitos. Luzes multicoloridas se acendiam nas minhas pálpebras fechadas e formas geométricas diversas - como múltiplos caleidoscópios - iluminavam a minha mente escura até que eu apagasse como uma vela soprada.

Evitava falar ao doutor sobre essas coisas. Temia que ele mudasse as drogas e eu perdesse as sensações que o vício me dava. Também não queria confessar-me viciada e assim agregar mais gravidade a minha “patologia” como diziam os médicos. Além disso, eu criara apego no doutor. Ele era um bom homem e cria nas minhas boas intenções de melhorar e na minha cura.

MEMÓRIAS DE UMA INSANA  IV – Tentativa de Homicídio
by Betha Mendonça

Não tenho idéia de quanto tempo passei na ala psiquiátrica quatro. Lembro que vivia entre estado de torpor, as boas alucinações visuais dos remédios e as sessões diárias com o doutor; nas quais omitia fatos e tentava parecer o mais lúcida que minha mente dissimulada podia.

Quando estava sozinha, às vezes mordia com força um lábio até sentir o prazer do gosto do sangue na língua. Então sonhava com o dia que sairia dali para outra ala, onde eu pudesse ouvir mais que as vozes cansativas do corpo de enfermagem, o doutor e as minhas vozes interiores.

Tudo aparentava melhora. Mas, tomei implicância por uma enfermeira. Ela sabia quem eu era. Que a docilidade e colaboração que eu demonstrava com o prosseguir do tratamento eram falsas e falou-me numa das vezes em que estivemos a sós.

Tentei me controlar. Uma força me impelia a dar-lhe uma lição por ousar esfregar a verdade na minha cara. Tem coisas que a gente sabe, pode dizer para gente mesmo e não dá a ninguém o direito de nos mostrar claramente.

Uma colega da moça abriu um pouco a guarda e eu consegui ficar com a colher de plástico de uma das refeições. Nada que pudesse ferir a mim ou a outra pessoa, elas deixavam comigo. Sempre duas pessoas me vigiavam a alimentação. Depois todo material usado era levado embora. E eu conseguira uma colher de plástico!...

Por mais de uma semana olhava para ela como um valioso troféu, enquanto alimentava cada momento mais raiva da agora minha inimiga mortal: a enfermeira. Horas a fio eu avaliava os modos de vingar-me dela com aquela arma.

O momento chegou. Enquanto ela me aplicava na veia uma medicação sob a supervisão da Enfermeira Chefa, a segunda foi chamada com urgência pelo alto-falante do hospital e saiu às pressas do quarto. Com força hercúlea quebrei a colher deixando só o cabo, pulei sobre ela e soquei-lhe a face até sangrar seu nariz. Aproveitei que estava tonta e fui enfiando o cabo da colher no corpo, ferindo a pele em vários lugares. Quando peguei o aparelho de injeção e ia furar seus olhos fui contida pela voz do doutor que gritava: - Pare!

O doutor não pareceu surpreso com a cena que presenciara. Creio que apesar da dissimulação, eu não conseguia esconder dele o ranço da loucura apegado ao meu corpo e mente.

MEMÓRIAS DE UMA INSANA V – Contenção
by Betha Mendonça

Meu período de isolamento aumentou depois que feri e quase matei uma enfermeira. No quarto, além de tudo acolchoado - como cuidado extra para com os profissionais da ala quatro - eu fui contida no leito. Isso significava ficar com as mãos e pés amarrados. E assim se foram as minhas esperanças de mudar de ala...

Fiquei muito deprimida. Perdi ainda mais a noção de tempo. Desconhecia se era dia ou noite. Horas a fio fitava o teto e contava repetidas vezes os quadrados do acolchoado como quem lançava dos lábios um mantra. Gostava de ouvir minha voz repetindo em ecos os numerais um a um até quarenta e começar tudo de novo.

Desgostosa e sem apetite: parei de comer. Emagreci mais de doze quilos. Apesar das conversas com o doutor a tentar que eu exteriorizasse minha dor, continuava fechada ao diálogo com qualquer pessoa e me negava à alimentação.

Para que eu não morresse de inanição enfiaram um tubo de borracha no meu nariz que ia até o estomago. Por ele me alimentavam com líquidos e pastas.

Minha família se desesperava que eu estivesse naquele estado, mas o doutor mantinha a calma e as certezas de que me viriam às melhoras...

MEMÓRIAS DE UMA INSANA VI - Catatonia
by Betha Mendonça

Minhas lembranças sobre o período que passei contida (braços e pernas amarrados) na ala quatro do manicômio são tão nubladas quanto às de toda a minha vida antes de ir para lá. É tudo encoberto por uma confusão de névoas e véus que não consigo precisar o que foi real ou partiu da minha imaginação doente.

Naqueles dias eu fiquei por tempos com a sensação de estar suspensa do chão. Estática, na mais profunda escuridão, que deve ser pior que a verdadeira cegueira.
Abria os olhos. Chegava a esbugalhá-los na vã tentativa de enxergar algo. Mas, a impressão que eu tinha quando olhava para cima era de quilômetros de negrume que deviam ir além dos limites do universo conhecido, e, se olhava para baixo era como se estivesse suspensa sobre um abismo sem fim.

As semanas passavam. Como um vegetal, no silêncio que não quebrava nem para conversar com o doutor, eu via os acontecimentos relacionados a mim como pelos olhos de outra pessoa: os banhos no leito com esponjas, a medicação que me injetam nas veias, a alimentação que empurravam pela sonda que ia do meu nariz até o estômago e nada daquilo me dizia de mim.

De repente - ainda parada e suspensa na sensação de acima infinito e abaixo poço sem fim - senti uma grande mão que me balançava de um lado para o outro como se eu fosse uma rede estendia ali pelo acaso. O balançar que no início era lento e agradável foi acelerando mais e mais, até que ficou tão depressa como um carrossel desgovernado. Em pavoroso desespero eu abri os olhos e gritei: - Socorro! Então percebi que estava no quarto acolchoado do isolamento.

Por sorte o doutor estava ao meu lado. Sorriu com a calma que lhe era peculiar e disse:
- Bem-vinda moça! Você saiu da catatonia!Ele era um homem muito bom e cria na minha cura.

MEMÓRIAS DE UMA INSANA VII – Dissimulação
by Betha Mendonça

Quando livre da catatonia retornei as conversas com o doutor. Ainda me incomodava a contenção. Tratei de ser o mais colaboradora possível com a equipe do setor psiquiátrico quatro, para ter as mãos e pés soltos de novo.

No dia em que finalmente consegui que me retirassem as amarras, assim que dei com meus membros soltos, puxei da veia o cateter, tirei do nariz a sonda com a qual era alimentada e tentei correr dali. Como reflexo vomitei todo acolchoado do chão e cai estatelada, por causa das pernas com musculatura fraca, tanto pelo tempo que passei deitada quanto pelo peso dos medicamentos.

O doutor foi severo comigo. Afirmou: se quebrasse novamente nosso trato voltaria para contenção. Que eu precisa me responsabilizar pelos meus atos e suas conseqüências... Como se eu me importasse com isso!...Só não queria era ficar presa ao leito de novo, agora que ultrapassara a catatonia...

Ensaiei um pranto profundo e arrependido. Acusei vozes de terem me levado aquela atitude desvairada. Eu faria o possível para que não se repetisse. Convenci a todos e quase convenço até a mim que estava sendo sincera.

Como minha mãe dizia: o castigo vem a cavalo. Naquele mesmo dia o meu chegou “montado” num zumbido nos meus ouvidos que ressoava por todo meu corpo. Fazia vibrar por dentro cada órgão e parte minha. Era como um silvo de cigarra de uma nota só. Desejei esmagar a cabeça como a uma noz, mas as paredes fofas não permitiriam que me batesse contra elas. Tive que me queixar ao doutor para que ele resolvesse aquilo para mim. Ele resolveu: mandou me doparem e eu apaguei. Homem bom o doutor.

MEMÓRIAS DE UMA INSANA VIII - Visões
by Betha Mendonça

A vida de uma maluca presa num hospício - como a de todas as pessoas sãs fora dele - não é nada fácil. Na odiosa ala quatro era pior. A cada momento, não sei se pelos medicamentos ou por minha psique desestruturada, qualquer gota d'água podia causar uma tsunami dentro de mim.

Na psicoterapia juntaram-se as conversas diárias mais duas terapeutas (ou o que as valha) ao doutor. Os três gostavam de anotar com cara que quem entende do riscado suas observações a respeito das minhas respostas e gestos durante as sessões.

Eles julgavam que eu colocava para fora o que se passava dentro de mim. Mas, apenas respondia com palavras feitas. Estava mais interessada nas imagens que criava deles durante esses ridículos períodos que nos levavam do nada para nenhum lugar.

E os via ardendo em chamas que iam do azul claro ao laranja fogueira. Era assim: eles clicavam na parte superior de suas canetas e saiam delas grossas línguas de fogo em vez da ponta para a escrita. O fogo rapidamente incendiava seus blocos que caiam ao chão acolchoado e os envolvia num fogaréu. Eu ouvia o crepitar dos seus corpos, o cheiro como carne de churrasco queimando, seus gritos a pedir socorro e depois o silêncio, o apagar repentino das chamas e por fim apenas três montes de cinza.

Outra vez a sala esfriava como se fosse um grande frigorífico. Eles empertigados nas suas cadeiras iam gelando devagar, as falas esmorecendo... Congelavam e ficavam empedernidos. Eu os soprava e de tão quente meu hálito os descongelava até que restavam três poças de água no chão. Divertia-me muito com tais devaneios, por que tinha a impressão de que eles que estavam a minha mercê e não eu a deles.

A psicoterapia continuou por longo período: eu falando baboseiras que nem lembro e me distraindo com minha imaginação; já que não tinha nada melhor para fazer além de contar os quadrados do teto... E nem me sentia culpada pelo doutor ser um homem bom e acreditar na minha cura.

MEMÓRIAS DE UMA INSANA IX - Sexualidade
by Betha Mendonça

Eram chatices sem fim os “papos terapêuticos” no isolamento quatro. Como daquela vez que trouxeram a baila o tema sexualidade. Disseram que eu falasse sobre o assunto, qual minha real orientação sexual...

Eu presa num sanatório sem ter um homem há não sei quantos meses e os idiotas me vêm com essa? Claro: eu só não subia pelas paredes devido o controle dos remédios que me tiravam a libido! Porém, de perversa disse que tinha tara por homens mais velhos e desde os nove anos dava em cima do pai de uma menina vizinha da minha casa.
Os olhos dos três terapeutas se cruzaram como se dissessem entre si: - Ah, ela tem problemas psicológicos desde a infância... E de cunho sexual! Aproveitei para criar situações as mais cabeludas com os mais diferentes homens da infância até a maturidade.

Enquanto eles escutavam com um prazer - que se notava pelos brilhos nos seus olhos - as coisas imundas que eu lhes relatava em sórdidos detalhes; dentro de mim vinha à nostalgia o meu primeiro namoradinho aos doze anos. A ingenuidade, os beijinhos escondidos e os passeios de mãos dadas... E com o passar dos anos todos os homens que me levaram a extremos momentos de felicidade ou de dor, e, me ajudaram a ser uma mulher na razão da palavra a quatro paredes e além delas.

Os analistas gostam de saber o lado sórdido das pessoas e culpar a sexualidade por quase todas as mazelas psiquiátricas do mundo. Eu não ia desapontá-los, não é? Inventei situações de alta promiscuidade, com sexo grupal e taras as mais variadas. Eles pareciam ter descoberto a pólvora de tanto que fizeram anotações nos seus blocos! O doutor pensou assim me conhecer melhor e pareceu contente por eu me expor mais ao dialogo. Bom sujeito o doutor. Tinha certo dó de ele crer na minha cura.

MEMÓRIAS DE UMA INSANA X - Religião
by Betha Mendonça

Numa das últimas sessões com os analistas na famigerada ala quatro da psiquiatria falou-se de crença, da necessidade ou não de se ter uma fé religiosa. Crer em si e se fazer crer. Confiar nas pessoas e ser de confiança. Questionamentos e assertivas, que para mim e a minha formação familiar ligada ao catolicismo, só aumentavam o tédio e as minhas certezas da inutilidade da dita psicoterapia.

Comportei-me como de costume: respostas prontas que ouvira sobre Deus, Santos, pecado, perdão e etc. Devo ter agradado a audiência, pois deixaram o quarto com ar de satisfação.

Tanto foi falado que passei a noite e madrugada alucinada. Imagens de anjos louros, faces rosadas e olhos azuis voavam com amplas e alvas asas. Incrível como até as visões são preconceituosas! Não lembro entre as hostes nem um ser celestial negro, de olhos escuros e cabelo pixaim. Enfim... De uma hora para outra o cenário com cheiros de perfumados incensos, fofas nuvens, anjos, músicas maravilhosas mudou para um odor forte de uréia. Parecia que a humanidade e quiçá a mortandade inteira havia urinado ali dentro. Transfigurado em monstros horrendos e animais asquerosos o céu virou uma sucursal do inferno, com lamentos e uivos desesperados. Todos eles me cercavam com olhos mais transtornados que os meus ao vê-los. Rodavam comigo ao centro num ritual macabro no qual eu seria a oferenda. O pavor me manteve em silêncio como quem assiste a um filme sem ter pipoca nem refrigerante nas mãos. Devo ter desmaiado aterrorizada e só dei que era dia quando me trouxeram o desjejum e a medicação.

Meu comportamento já não aparentava agressividade. Como falavam em transferência para a ala três, preferi nem tocar com o doutor sobre o ocorrido. Tive receio de permanecer naquele local. O doutor era um homem bom, mas são e nunca se sabe o que pode fazer uma pessoa sã!...

MEMÓRIAS DE UMA INSANA XI – Ala Três
by Betha Mendonça

O esperado dia da minha transferência da ala quatro do sanatório para a ala três finalmente chegou. Não continha o contentamento de sair daquele quarto sem janela.Caminhei junto ao doutor e ao carcereiro, digo, enfermeiro responsável, pelos corredores frios e mal iluminados. Passamos por vários portões gradeados até chegar ao local minha nova estadia. Ali ainda era um setor de isolamento, porém os cômodos eram “normais” sem a proteção dos acolchoados: cama hospitalar, mesas e acessórios.

Logo que fiquei a sós, com “olhos de lince” explorei o local. Primeiro corri à janela. Era vedada. Grossa grade separava o vidro da abertura. Eu vi o céu!Manhã clara, de poucas nuvens e eu olhando maravilhada a vida lá fora!...

Explorei o banheiro, os objetos de higiene... Havia batom!
Há quanto eu não via um? Passei nos lábios. Deliciei-me com o sabor morango e cheiro que ele exalava. Na falta de espelho olhei pelo cromado da descarga e vi que ficara com aparência mais feminina, apesar do rosto maltratado. Meus cabelos cresciam desordenados depois de raspados para as suturas no meu couro cabeludo, da época que estourei a cabeça entre as paredes... Maior viagem aquele surto!

Voltei para janela. Meditei ao ver a correria das pessoas lá embaixo, os carros e tudo o mais: quem era mais louco e estava mais preso? Eu ou eles?Via as pessoas como peixes num aquário que a gente se encanta, mas não gostaria de viver no lugar deles. Sentia certo conforto de está no hospício e não ter responsabilidades, nada para cuidar... Apenas sentir os dias passando, comboio de horas mortas, em que eu estava desligada do mundo real, se é que havia um.

Naquele dia durante a terapia pedi que me deixassem ter um bloco de papel, caneta e lápis coloridos, uma vez que a diferença daquela para a ala anterior era a janela e a ausência dos acolchoados. Os terapeutas sabiam o quanto eu era dissimulada e que ainda oferecia “certo” perigo a mim e aos profissionais. Afirmaram que logo percebessem que eu tinha condições acatariam meu pedido.

Fiquei com ódio de terem me negado o desejo. A vontade que tive foi jogar uma das cadeiras e rachar o crânio da terapeuta ruiva a esquerda do doutor. Nunca fui com a cara dela! Tinha um ar sonso, de superioridade fingida em simpatia. Detestava os olhares e sorrisos complacentes que me lançava como quem pensava: - Pobre maluca!

Tratei de me controlar, apertando as mãos uma na outra até quase quebrar os dedos. Não podia voltar para a ala quatro agora que acabara de chegar a três... O doutor me deu os parabéns pela melhoras. Coitado, ele cria na minha cura!

MEMÓRIAS DE UMA INSANA XII – Impregnação Medicamentosa
by Betha Mendonça

Hospício é um lugar ruim de ser “hospede” qualquer que seja o local. Na ala número três não bastassem meus gritos interiores e delírios – sem o acolchoado que protegia as paredes e abafava os sons - eu tinha que aturar os dos outros doidos. E como berravam os malucos! Sorte que a noite havia sossego. Com todo mundo dopado, a gente podia dormir e alucinar sem incomodar uns aos outros.

Como havia janela no quarto a minha pele adquiriu ar menos doentio. O rosto corou de tanto que ficava com ele pregado na grade a sentir o calor do sol. Pude verificar tal melhora pelo cromado da descarga, pois continuava sem espelho.

Tudo começou a mudar de repente. Meus músculos dia após dia ficavam mais rígidos. Passei a ter dificuldade para movimentar os membros e mal conseguia falar nas sessões da psicoterapia. A saliva tornou-se freqüente e fluida e eu babava como um bebê. Andava com os braços em ângulos retos e as pernas retesadas como um autômato antigo, da época em que eles não tinham muita mobilidade. Resumo a ópera: eu me tornara um robô ultrapassado como o do seriado Perdidos no Espaço.

Para completar a desgraça meus pensamentos embotavam e como eu esquecia coisas, as repetia diversas vezes até a exaustão. Um horror! Calmo e sempre otimista na minha cura, o doutor explicou que ‘robotização’ se devia a impregnação do meu organismo por alguns medicamentos. Segundo ele o ajuste nas dosagens ia me libertar daquela situação. Boa pessoa o doutor, mas se eu tivesse condições dava um tabefe na cara dele por errar com a mão na minha medicação e me deixar daquele jeito patético!

MEMÓRIAS DE UMA INSANA XIII – Suicídio
by Betha Mendonça

A ala de isolamento três do manicômio era bem mais agitada que a quatro. Com a janela e sem paredes acolchoadas - que abafavam sons e evitam traumatismos - um mundo de novidades se abria a cada hora.

Nessa manhã havia corre-corre e burburinho no setor. Presa no meu quarto eu dava um braço para saber do que se tratava... Achatei a cara no vidro da porta e liguei em potência máxima os ouvidos para saber quais as novas. O ruim era a saliva da impregnação dos medicamentos, que ainda abundante, encharcava a vidraça e eu tinha que enxugar para melhor visibilidade do corredor.

Ouvi os gritos histéricos no quarto ao lado de um dos malucos meu vizinho de infortúnio. O homem berrava palavrões que eu nem conhecia. Impropérios a sua esposa. Ou ela era uma grande vagabunda ou não passava de delírio dele. As profissionais falavam de modo pausado para que se acalmasse e entregasse o pedaço de espelho que tinha nas mãos. Como assim? Ele tinha espelho e eu que era mulher não podia ter um? Ia protestar! Ia sim! Mas, deixaria isso pra depois...

Como quem acompanha uma novela no rádio apurei mais os ouvidos. O maluco dizia que era para avisarem para aquela vaca (mulher dele) que ela era a culpada por tudo que lhe acontecera e calou-se. Os terapeutas e enfermeiras da ala falavam entre si coisas que eu não entendia e soltavam exclamações como: - Pare!-Não faça isso! -Cuidado! - Ó, Deus!E minutos depois se fez silencio. Duas enfermeiras passaram correndo e rapidamente voltaram com uma maca e mais um enfermeiro. Pelo vidro da minha porta assisti os acontecimentos como uma telenovela.

A maca voltou com meu vizinho. Os olhos abertos parados, esvaído em sangue: punhos cortados, face, braços e um pedaço de espelho enfiado no peito. Acho que ele estava morto!

Durante a terapia quando toquei no assunto ninguém me explicou o que houvera. O doutor era um homem bom e evitava fatos que julgava que atrapalhariam a cura que eu teria...

MEMÓRIAS DE UMA INSANA XIV – Silêncio e Solidão
by Betha Mendonça

Silenciei as palavras. Presas na ponta da minha língua foram absorvidas e transportadas pelos meus vasos por todo o meu organismo. De acordo com o sentimento, o efeito produzido podia ser o de um veneno que me acorrentava à alma no abismo do sofrimento interior, disparava no meu cérebro dores lancinantes e me contorcia as entranhas na mágoa, rancor e tristeza. O efeito floral dava-me vôos n’alma, ondas alfa me dominavam o cérebro e meu corpo exalava um êxtase perfumado.

Havia em todo aquele silêncio grande satisfação interior de saber só minhas aquelas sensações. Um prazer solitário que me dava à certeza de que meu mundo interior era rico e que eu não precisava ir além das palavras: elas jamais seriam entendidas pelos outros.

Os terapeutas vinham. Como pescadores lançavam as mais diversas “iscas” na tentativa de pescar alguma palavra ou emoção no fundo de mim. Mas, eu permanecia como um aquário de águas turvas, que por falta de manutenção, sem oxigênio toda a vida havia morrido.

Minha família veio. Eu os olhava como os estranhos que eles me foram à vida toda e só depois que enlouqueci e vim parar no hospício fui capaz de perceber... Traziam lágrimas nos olhos. Não sei se de culpa ou piedade e nem me interessava saber. Tinham nas mãos os afagos e na voz a doçura que não me deram em menina... Nem nas centenas de vezes em que lhes supliquei por atenção!

Após todos se retirarem o doutor me olhou inquisidor antes de fechar a porta do quarto. Creio que começou a duvidar da minha cura!...

MEMÓRIAS DE UMA INSANA (Final) – Natal Macabro
by Betha Mendonça

Naquela manhã chuvosa de dezembro. Cara pregada na grade da janela que dava para a rua (lugar onde eu não tinha a menor vontade de estar), o andar apressado das pessoas carregadas de sacolas lembrou-me o longínquo Natal...

Por falta de calor humano fazia muito frio na mansão da minha família. Uma semana antes das festas, o frenesi dos empregados em arrumar a casa e as malas dos meus pais (iam para Nova Iorque com um grupo de amigos endinheirados) era estranho parque de diversões para mim e meus irmãos. Ouvimos falar da neve, dos passeios, dos presentes e toda uma programação que com dificuldade entendemos: não faríamos parte.

Dias depois acordamos e fomos avisados pela governanta e nossas babás que papai e mamãe já haviam partido. Deixaram beijos e abraços. A casa com uma decoração natalina cinematográfica para que pudéssemos aproveitar em brincadeiras e empregados muito bons conosco - não sei se por piedade ou por serem bem pagos - faziam de tudo para nos divertir e alegrar.

Na Véspera de Natal serviram-nos uma deliciosa ceia às 21 horas, cantaram as canções natalinas de praxe e nos colocaram para dormir. Choramos de saudades de nossos pais até pegarmos no sono.
Acordamos de madrugada.Caia uma chuva torrencial com trovões e raios que clareavam aquela noite - que deveria ser mágica – enchendo-nos de temor e maus presságios.Gritamos pelos criados e não obtivemos respostas. Descemos para a sala principal. Entre confusos e espantados, nós vimos cinco homens armados com facas e revólveres vestidos em trajes de Papai Noel. A criadagem jazia ensangüentada no chão.

Desnorteados como baratas sob efeito de inseticidas, cada um de nós correu aos gritos tentando salvar a própria pele. Eu me joguei na escada do porão, subi num móvel e me arremessei pelo vidro da janelinha que dava para o gramado do jardim. Fiquei escondida na mini-floresta que circundava a casa. Em choque, de longe ouvia os apelos dos meus manos por socorro e as gargalhadas dos bandidos acompanhadas de tiros que lembravam fogos juninos.

Não consigo precisar quanto tempo durou toda aquela atividade e nem quanto tempo fiquei em letargia, até sentir o sol já quente na minha pele e perceber um silêncio que doía por dentro.Como um robô adentrei a casa.Tudo de valor financeiro havia sido saqueado.O que não puderam levar destruíram com facadas e balas.Chamei pelos meus irmãos. Foi então que vi a macabra Árvore de Natal: no lugar dos enfeites pendiam as cabeças dos meus irmãos e dos empregados.Eu contava apenas sete anos e estou há vinte internada nesse manicômio de onde sei que só sairei morta.

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